sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Dordonha


Nem que fosse a propósito. Nas minhas leituras de viagem levei, como levo quase sempre, um livro do Henry Miller (tenho um fascínio por este escritor desde a adolescência e gosto da sua companhia quando viajo), desta feita enveredando pela leitura de O Colosso de Maroussi, deparei-me, exactamente, quando visitávamos a região da Dordonha com esta passagem que define o quão inspirador este sítio pode ser.

«Uns meses antes de rebentar a guerra, resolvi tirar umas longas férias. Para começar, há muito tempo que desejava visitar o vale de Dordogne. Por isso fiz a mala e meti-me no comboio para Rocamadour, onde cheguei de manhã cedo, perto do nascer do Sol e com a Lua ainda a brilhar luminosamente. Foi um rasgo de génio da minha parte percorrer a região da Dordogne antes de mergulhar no mundo luminoso e antigo da Grécia. O simples vislumbrar em Domme, o negro e misterioso rio da bela fraga da orla da cidade é algo para ficar grato durante o resto da vida. Para mim, este rio, esta região pertence ao poeta Rainer Maria Rilke. Não é francesa, não é austríaca, não é sequer europeia: é o território do encantamento que os poetas demarcaram e que eles e só eles podem reivindicar. É o que existe mais próximo do Paraíso deste lado da Grécia. Chamemos-lhe o paraíso do homem francês, a título de concessão. Na realidade, deve ter sido um paraíso durante muitos milhares de anos. Acredito que deve tê-lo sido para o homem de Cro-Magnon, apesar dos vestígios fossilizados das grandes cavernas que apontam para condições de vida assaz desorientadoras e aterradoras. Acredito que o homem do Cro-Magnon se fixou aqui porque era extremamente inteligente e tinha um sentido do belo altamente desenvolvido. Acredito que o seu sentido religioso já estava também altamente desenvolvido e floresceu aqui apesar de ele viver como um animal nas profundezas das cavernas. Acredito que esta região tranquila da França será sempre um lugar sagrado para o homem, e que quando as cidades tiverem dizimado os poetas este será o refúgio e o berço dos poetas vindouros. Repito, foi muito importante para mim ter visto a Dordogne: isso dá-me esperança para o futuro da espécie, para o futuro da própria Terra. A França pode um dia deixar de existir, mas a Dordogne continuará a viver, do mesmo modo que os sonhos continuarão a viver e a alimentar as almas dos homens.»

Henry Miller in O Colosso de Maroussi

Com ou sem FMI...